Uma vacina que, em vez de impedir a infecção por vírus, seja capaz de tratar certas formas de câncer provocadas por eles pode estar a caminho. Um estudo publicado hoje (3 de março) na revista Science Translational Medicine apresenta resultados animadores dos testes em animais de um candidato a imunizante para combater tumores causados pela infecção crônica por HPV, o vírus do papiloma humano, transmitido por contato sexual e responsável por formas de câncer muito comuns, como o de colo do útero.
Elaborada em uma parceria entre pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, a potencial vacina usa a mesma tecnologia à base de RNA mensageiro (mRNA) empregada pela Pfizer/BioNTech na produção do imunizante contra a Covid-19 e integra a categoria dos chamados imunizantes terapêuticos. Eles são produzidos com o objetivo de estimular o sistema de defesa a eliminar as células já doentes, e não de evitar a infecção pelo HPV, como as vacinas preventivas disponíveis hoje em vários países, entre eles o Brasil.
Nos experimentos com camundongos, a nova candidata a vacina terapêutica, com uma única dose, livrou os animais de tumores localizados em diferentes regiões do corpo e até em estágios avançados de desenvolvimento. Esses resultados promissores devem estimular a continuação dos testes, embora ainda possivelmente leve tempo para que um imunizante desse tipo se torne disponível para o uso em seres humanos.
Durante o doutorado orientado pelo microbiologista Luís Carlos de Souza Ferreira, da USP, a bioctecnóloga Jamile Ramos da Silva realizou um estágio de pesquisa no grupo liderado pelo bioquímico húngaro Norbert Pardi, na Pensilvânia, e participou do desenvolvimento de três formulações que usam a molécula de mRNA para ensinar o sistema de defesa a reconhecer e atacar as células infectadas pelo HPV. O mRNA é uma molécula de material genético de fita simples que faz o papel dos antigos monges copistas, reprodutores de livros na Idade Média. No núcleo das células, ele copia as informações do DNA que orientam a produção das proteínas e as levam ao local de síntese.
Uma das formulações aplicada aos roedores usava a molécula de RNA como é naturalmente encontrada nos seres vivos – formada por sequência das bases nitrogenadas adenina (A), citosina (C), guanina (G) e uracila (U) – e incapaz de se multiplicar espontaneamente no interior das células. Chamada de RNA não modificado e não replicante, essa versão da molécula costuma causar uma inflamação mais intensa, desejável para combater células tumorais, mas potencialmente fatal se for excessiva, porque atinge também o restante do organismo. A segunda versão do candidato a imunizante empregou uma molécula de RNA modificado e não replicante, desenvolvida pela bioquímica húngara Katalin Karikó e pelo médico Drew Weissman, ambos da Universidade da Pensilvânia – Karikó é vice-presidente sênior da BioNTech e coautora do estudo atual. Nessa versão, licenciada para a BioNTech utilizar na vacina contra a Covid-19, a uracila é substituída por uma molécula sintética, o que ajuda a reduzir a inflamação. A terceira formulação era à base de RNA contendo um trecho especial que o torna autorreplicante. Uma vez no interior das células, o RNA autorreplicante passa a produzir cópias de si próprio. Desse modo, aumenta-se a fabricação das proteínas codificadas por ele para combater as células tumorais mesmo usando concentrações mais baixas do material genético.
Em todas as formulações, a molécula de RNA continha a receita para a fabricação de duas proteínas: a E7 do HPV, que permanece exposta na superfície das células tumorais infectadas pelo vírus; e a glicoproteína D, que compõe a camada externa do vírus do herpes. “A primeira sinaliza para o sistema de defesa as células a serem destruídas, enquanto a segunda intensifica a resposta imunológica”, explica Ferreira, da USP, um dos coordenadores da pesquisa.
Protegidas por uma camada de lipídios, que impede a destruição antes da entrada nas células, as moléculas de RNA contendo as informações das duas proteínas foram testadas em quatro dosagens – cada uma delas administrada em uma única aplicação intramuscular – contra tumores de diferentes tamanhos e localização.
Em um dos experimentos realizados no Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas do Instituto de Biociências da USP, Ramos da Silva implantou células tumorais sob a pele de camundongos e os separou em três grupos: um recebeu uma injeção da formulação contendo RNA não modificado e não replicante, outro a de RNA modificado não replicante e um terceiro a de RNA autorreplicante.
As três versões evitaram o desenvolvimento do câncer, mas as duas últimas foram mais eficientes. Todos os animais tratados com o imunizante à base de RNA modificado ou de RNA autorreplicante ficaram totalmente livres do tumor e assim permaneceram pelos 70 dias em que foram acompanhados (um camundongo vive cerca de mil dias). Entre os que receberam o RNA não modificado, a taxa de sobrevivência foi de 80%. No grupo de controle, que recebeu um composto inócuo (placebo), todos os animais desenvolveram câncer e tiveram de ser sacrificados em um mês.
Análises mostraram que essas formulações à base de RNA ativam os linfócitos T do tipo CD8, que identificam as células tumorais contendo o HPV e as destroem causando perfurações em sua membrana. Mesmo imunizados, roedores geneticamente modificados para não produzir esse tipo de linfócito adoeciam de modo semelhante aos tratados com placebo.
Em um teste que simula a recidiva da doença, algo frequente em muitas formas de câncer, Ramos da Silva voltou a implantar células tumorais nos roedores 90 dias após a dose do imunizante. Novamente, as formulações baseadas em RNA modificado e RNA autorreplicante também evitaram que os animais adoecessem, enquanto a imunização com a molécula de RNA não modificado e não replicante protegeu apenas metade dos animais. Já quando os tumores foram implantados em regiões distintas do corpo, na vagina ou na língua, simulando onde ocorrem alguns cânceres causados por HPV, a formulação de RNA não modificado e a de RNA autorreplicante se saíram melhor e levaram à regressão em 100% dos casos. Os dados estão no artigo da Science Translational Medicine e foram apresentados por Ramos da Silva em 2 de março no encontro anual da Associação Norte-americana para o Avanço da Ciência (AAAS), realizado na cidade de Washington.
Mesmo contra a doença em estágio avançado, os candidatos a imunizante à base de RNA se saíram bem com apenas uma aplicação. Inoculadas nos camundongos quando o tumor tinha cerca de 1,2 centímetro de diâmetro, quase um décimo do tamanho do animal, as três formulações permitiram que 60% deles se livrassem completamente do câncer – e assim permanecessem por um longo período.
Todas as formulações à base de RNA geraram resultados muito superiores aos obtidos com outras duas tecnologias de vacina avaliadas nos experimentos: uma em que se usava uma molécula de DNA contendo a receita da E7 e da glicoproteína D, e outra em que uma molécula híbrida purificada das duas proteínas era inoculada diretamente nos animais. “As formulações à base de RNA, mesmo em doses muito baixas, se mostraram incomparavelmente melhores”, afirma Ferreira.
Apesar dos resultados animadores, ainda deve levar alguns anos até que uma vacina terapêutica contra o câncer causado pelo HPV esteja disponível para a população. Antes disso, são necessários mais experimentos com animais para avaliar a eficácia e a segurança das formulações, além de produzi-las seguindo as boas práticas de fabricação, exigidas pelas agências sanitárias para os compostos administrados em seres humanos. “Já foram conduzidos cerca de 30 testes clínicos com compostos candidatos a vacina terapêutica contra os tumores provocados por HPV, mas nenhum atingiu eficácia suficiente para justificar o desenvolvimento do produto”, conta Ferreira.
O esforço se justifica porque são necessárias formas complementares de combater os cânceres genitais causados pelo HPV. As duas vacinas hoje disponíveis – a Gardasil, produzida pela empresa farmacêutica Merck, e a Cervarix, da GlaxoSmithKline – são eficientes, mas agem de forma profilática. Elas estimulam a produção de anticorpos que aderem ao vírus e evitam que penetrem nas células, prevenindo, assim, o desenvolvimento de cânceres genitais (colo do útero, vagina, pênis e ânus) ou de cabeça e pescoço (boca e garganta). Para serem eficazes, porém, esses imunizantes precisam ser administrados antes de um primeiro contato com o vírus, razão por que devem ser aplicados em crianças e adolescentes, antes do início da vida sexual.
Projetos
1. Descoberta de antígenos e desenvolvimento de métodos de diagnóstico sorológico e estratégias vacinais contra o vírus zika (ZIKV) (nº 16/20045-7); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Luís Carlos de Souza Ferreira (USP); Investimento R$ 958.175,01.
2. Direcionamento de antígenos para células dendríticas como estratégia para melhorar a eficiência de imunoterapias contra tumores associados ao HPV-16 (nº 18/26515-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Luís Carlos de Souza Ferreira (USP); Investimento R$ 216.944,50.
3. Vacina de RNA autoamplificante como estratégia imunoterapêutica para o controle de tumores induzidos por HPV-16 (nº 16/11594-7); Modalidade Bolsa no Brasil – Doutorado; Pesquisador responsável Luís Carlos de Souza Ferreira (USP); ¨C28C Jamile Ramos da Silva; ¨C29C R$ 321.885,68.
¨C30C Vacinas baseadas em RNA contra tumores induzidos por HPV (nº 19/01523-3);¨C31CBolsa no Exterior – Estágio de Pesquisa – Doutorado¨C32CLuís Carlos de Souza Ferreira (USP); ¨C33C Jamile Ramos da Silva; ¨C34C Norbert Pardi (Universidade da Pensilvânia); ¨C35C R$ 80.892,33.
¨C36C Controle de tumores induzidos por HPV por imunoterapia baseada na associação de anticorpos monoclonais de bloqueio de vias imunossupressoras a uma vacina terapêutica capaz de ativar linfócitos T CD8+ citotóxicos (nº 16/14344-1); ¨C37C Bolsa no Brasil – Doutorado; ¨C38C Luís Carlos de Souza Ferreira (USP); ¨C39C Natiely Silva Sales; ¨C40C R$ 226.459,68.
¨C41C Direcionamento de antígenos para células dendríticas como estratégia imunoterapêutica para o controle de tumores associados ao HPV (nº 18/07629-5); ¨C42C Bolsa no Brasil – Doutorado Direto; ¨C43C Luís Carlos de Souza Ferreira (USP); ¨C44CMariângela de Oliveira Silva; ¨C45C R$ 187.218,60.
¨C46C Novas fronteiras terapêuticas contra tumores causados pelo vírus do papiloma humano (HPV): avaliação experimental da associação da quimioterapia com estratégias vacinais (nº 13/15360-2); ¨C47C Bolsa no Brasil – Doutorado; ¨C48C Luís Carlos de Souza Ferreira (USP); ¨C49CLuana Raposo de Melo Moraes Aps; ¨C50C R$ 215.707,18.
¨C51C Imunoterapia ativa baseada em células dendríticas consorciada à quimioterapia no tratamento de tumores em estágio avançado associados ao HPV-16 (nº 21/03326-0); ¨C52C Bolsa no Brasil – Doutorado; ¨C53C Luís Carlos de Souza Ferreira (USP); ¨C54C Karine Bitencourt Rodrigues; ¨C55C R$ 101.287,44.
¨C56C Neoplasias induzidas por papilomavírus humano (HPV): Um novo enfoque terapêutico baseado em imunoterapia ativa pela estimulação direcionada de células dendríticas (nº 17/21358-1); ¨C57C Bolsa no Brasil – Pós-doutorado; ¨C58C Luís Carlos de Souza Ferreira (USP); ¨C59C Bruna Felício Milazzotto Maldonado Porchia Ribeiro; ¨C60C R$ 350.326,41.
Artigo científico
RAMOS DA SILVA, J. et al. Single immunizations of self-amplifying or nonreplicating mRNA-LNP vaccines control HPV-associated tumors in mice. Science Translational Medicine. 3 mar. 2023.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.
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