Em 2019, 77,12% das crianças brasileiras com menos de 10 anos de idade receberam todas as vacinas recomendadas pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI) no Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2020, quando a pandemia de covid-19 foi oficialmente declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), esse percentual caiu para 68%. É o que mostra um estudo publicado em março no periódico Vaccine, [1] que envolveu pesquisadores do Brasil (Minas Gerais e São Paulo), dos Estados Unidos e do Canadá. O grupo identificou que, à medida que os casos de infecção por SARS-CoV-2 aumentaram, o total de vacinas administradas pelo PNI diminuiu. Como resultado, o Brasil chegou ao final de 2020 com taxas vacinais abaixo das projetadas para o período.
O estudo foi conduzido pelos seguintes pesquisadores: Dra. Carolina Braga Moura, médica residente da Universidade Federal Fluminense (UFF), Dr. Paul Truche e Alexandra Buda, ambos da Harvard Medical School, nos EUA, Lucas Salgado, da União Educacional do Vale do Aço (UNIVAÇO), Thiaro Meireles, da Universidade de São Paulo (USP), Dr. Vitor Santana e Dra. Aline Bentes, ambos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Dr. Fabio Botelho, do Montreal Children’s Hospital, no Canadá, e Dr. David Mooney, do Boston Children’s Hospital, nos EUA. Os autores analisaram dados do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS) referentes a 14 vacinas administradas em crianças menores de 10 anos de idade entre 2015 e 2020. A equipe analisou as coberturas vacinais nacionalmente e comparou as taxas nas cinco regiões brasileiras.
Entre janeiro de 2015 e dezembro de 2020, a média de vacinas administradas em crianças foi de 53,4 por 100 mil habitantes. Entre fevereiro e dezembro de 2020, essa taxa caiu para 50,4.
Comparando as taxas de 2019 com as de 2020, os pesquisadores identificaram uma queda de 9,4% no último período. Ao observar as diferentes vacinas, eles notaram que, em 2020, a administração da vacina contra hepatite B caiu 31,89% em relação ao ano anterior. O início da pandemia também foi marcado por declínios importantes na distribuição de doses das vacinas tríplice viral (-27,26%), meningocócica (-25,02%), BCG (-20,00%), hepatite A (-15,4%) e pólio inativada (-10%). Por outro lado, houve aumento na aplicação das vacinas de influenza (+385%), tríplice bacteriana (+58,34%), febre amarela (+20%) e pentavalente (+6,20%), especialmente no mês de outubro.
Segundo a Dra. Carolina, a tendência de queda da cobertura vacinal já existia no Brasil há mais de cinco anos, porém foi acentuada pela covid-19. “Mais pesquisas são necessárias para esclarecer as verdadeiras causas desse declínio, mas acreditamos que possa estar relacionado a novos movimentos antivacina e diminuição da conscientização acerca da vacinação infantil”, destacou a pesquisadora em entrevista ao Medscape.
Quanto aos imunizantes cuja cobertura aumentou em 2020, a autora explicou que diferentes fatores podem estar por trás deste achado. No caso da influenza, por exemplo, os autores entendem que o aumento detectado no estudo possa ser consequência de uma grande campanha de vacinação contra esta infecção, conduzida pelo Ministério da Saúde por volta de outubro de 2020. “Após seis meses de pandemia e medidas de isolamento social, acreditamos que muitas pessoas talvez estivessem com medo de contrair o vírus da gripe, e até mesmo preocupadas com a possibilidade de serem infectadas pelo vírus influenza e acabarem se tornando mais sensíveis ao contágio de covid-19”, considerou a autora.
Em relação às outras vacinas cuja cobertura aumentou em 2020, os autores acreditam que, por serem imunizantes com necessidade de reforço alguns anos após a primeira dose, as equipes de saúde que administraram a vacina contra a influenza possam ter orientado os receptores a também receber esses imunizantes. “Não conseguimos identificar outro fator específico para que isso tenha ocorrido”, explicou a médica.
Outro ponto analisado pelo grupo foi o impacto regional da covid-19 sobre a cobertura vacinal. A pesquisa revelou que a vacinação caiu mais nas áreas com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e menor renda per capita, com a região Norte do Brasil registrando a maior queda nas taxas de imunização em 2020.
“As regiões Norte e Nordeste foram as mais afetadas no início da pandemia, com queda mais abrupta das taxas de vacinação. Sabe-se que as regiões com menos recursos financeiros e institucionais são sempre as mais afetadas em crises humanitárias”, destacou a Dra. Carolina, lembrando que vários fatores podem explicar esse impacto, entre eles, dificuldade de abastecimento dos postos de vacinação em regiões mais remotas do Brasil durante a pandemia, falta de acesso à informação apropriada e falta de profissionais de saúde (que foi agravada com a pandemia). “Estados como Pará e Amazonas, que são extensos em área, também apresentam algumas dificuldades em relação à distribuição das doses, como população dispersa, [localização das populações] indígenas e grupos com maior dificuldade de acesso aos centros de saúde, principalmente durante o lockdown”, acrescentou.
Apesar de as regiões mais pobres terem sido mais impactadas, o estudo mostrou que houve dinâmicas distintas de declínio nas regiões. No norte do Brasil, as taxas de vacinação sofreram uma queda importante no início de 2020, porém houve recuperação ao longo do ano e, ao final de 2020, a cobertura alcançou a projeção estimada para o período. Já as regiões Sul e Sudeste, embora tenham sofrido um declínio menor quando comparadas às áreas com menor IDH, tiveram uma queda que se manteve até o final do ano de 2020. Segundo a Dra. Carolina, ainda são necessários mais estudos para entender esse padrão.
Como o Brasil já vinha enfrentando uma tendência de diminuição das taxas de vacinação infantil mesmo antes da covid-19, o grupo entende que as atuais políticas de vacinação devem ser revistas. Isso porque a permanência nesse padrão de declínio eleva o risco de novos surtos e de retorno de doenças imunopreveníveis. “Infelizmente, houve um fortalecimento de movimentos antivacina, amplificado pela disseminação de informações falsas. Esse cenário agrava ainda mais a recuperação das taxas de vacinação”, ressaltou a Dra. Carolina.
O primeiro passo para contornar a atual situação, segundo a pesquisadora, é conduzir pesquisas éticas e bem realizadas, a fim de verificar os dados e entender melhor o problema. Nesse sentido, a médica destacou a importância de trabalhos como o descrito nesta entrevista, uma vez que eles fornecem números que enfraquecem informações falsas, chamam a atenção das autoridades para a gravidade da situação e contribuem para conscientizar pessoas céticas à vacinação.
Outra medida importante, de acordo com a Dra. Carolina, é garantir a disponibilidade de equipes e vacinas nas diferentes regiões do país, bem como realizar novas campanhas de vacinação. “Acreditamos que campanhas vacinais mais frequentes e a busca ativa da população não vacinada pelas equipes de saúde básica (UBS e agentes comunitários de saúde) sejam boas estratégias”, afirmou. Para a especialista, com informações corretas, a população brasileira atenderá ao chamado. “Temos inúmeros exemplos de campanhas de conscientização bem-sucedidas, reconhecidas internacionalmente, como a política antitabagismo, o uso de capacete e cinto de segurança”, afirmou.
Fonte: Medscape (https://portugues.medscape.com/verartigo/6507916?uac=403241PV&faf=1&sso=true&impID=4258059&src=mkm_ret_220519_mscpmrk_trdalrt-pt_int)