O imunizante, que está sendo produzido pela Universidade de Nebraska, nos Estados Unidos, deverá proteger da doença causada pelo “Plasmodium vivax”
Uma vacina brasileira contra o tipo de malária que mais atinge as Américas e responsável por quase 90% dos casos no Brasil (causada pelo Plasmodium Vivax) deve passar para uma etapa importante a partir de 2023: os ensaios clínicos. A novidade foi revelada por Irene Soares, professora do departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP, participante do Núcleo de Pesquisa em Vacinas (NAP) da Pró-Reitoria de Pesquisa (PRP) da USP e coordenadora do trabalho.
Passaram-se quase dez anos desde que a proteína quimérica universal (PvCSP -All epitopes) foi apresentada pela primeira vez à comunidade científica até o depósito da patente, em março de 2022, junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Atualmente, a vacina para uso em humanos está sendo produzida nos Estados Unidos, na Universidade de Nebraska. “Ao longo dessa produção, que deve durar até o ano que vem, vão ser estabelecidos os protocolos de obtenção da proteína pura, além da realização de testes de estabilidade”, conta Irene. Ainda segundo ela, os recursos para realização dos ensaios clínicos fase 1 virão da Financiadora de Inovação e Pesquisa (Finep).
Além disso, foi estabelecida uma parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), por meio do Centro Nacional de Vacinas. “Eles vão nos ajudar em todos os procedimentos para passarmos da fase de bancada de laboratório para a geração de um produto propriamente dito”, relata a coordenadora dos estudos.
Dificuldades e desafios
Atualmente, a única vacina contra malária disponível no mercado (conhecida como Mosquirix) protege contra a doença causada pelo protozoário Plasmodium falciparum. Ela foi produzida com base na proteína denominada circunsporozoíta (CSP), o componente mais abundante da superfície do esporozoíto, e que está envolvida nos estágios iniciais de invasão de células do fígado de mamíferos. A CSP recobre os plasmódios e apresenta epítopos (área da molécula do antígeno que se liga aos receptores celulares e aos anticorpos) específicos para cada espécie do parasita. A porção central da proteína é representada por sequências repetitivas de aminoácidos.
Como essa proteína foi associada a uma proteção eficaz contra a malária, a maioria dos ensaios em animais e humanos são baseados na CSP. Ela é um alvo importante para anticorpos e células T (CD4+ e CD8+), que podem eliminar os estágios pré-eritrocitários (antes de atingir as hemácias) do parasita.
Para o P. falciparum, que é a espécie mais agressiva e dominante nas regiões africanas, no sudeste asiático, mediterrâneo oriental e pacífico ocidental, as sequências dos aminoácidos da porção central, alvos de anticorpos, são preservadas.
Mas para o P. vivax, que o parasita mais presente na região das Américas – onde representa 74% dos casos, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), existem três variantes descritas na literatura: VK210, VK247 e vivax-like.
“Vem daí uma das maiores dificuldades de se produzir uma vacina para contra a malária vivax”, explica Alba Marina Gimenez, bióloga e pós-doutoranda no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, que participou das etapas iniciais do estudo. “Ou se faz três vacinas diferentes, o que já é complicado, ou encontram-se formas de ter um só imunizante que cubra as três variações genéticas.” Até a divulgação desta reportagem, ainda não existia nenhum imunizante aprovado para este tipo da doença.
O P. vivax Vaccine Lab, laboratório coordenado por Irene Soares, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), vem, ao longo dos anos, direcionando esforços para produzir uma vacina universal, ou seja, que dê proteção para as variantes de P. Vivax em uma só formulação.
Proteína universal e resultados posteriores
Em 2014, em uma pesquisa realizada em colaboração com Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mostrou qual formulação vacinal seria ideal para induzir a produção de anticorpos contra as três variantes genéticas da CSP. O imunizante, ainda em fase de testes, continha a CSP expressa em bactérias Escherichia Coli e vetores adenovirais. Um vetor adenoviral é construído removendo o material genético de um adenovírus (para que ele se replique e cause doenças) e inserindo instruções genéticas do organismo de interesse.
Depois disso, camundongos foram imunizados e os pesquisadores mediram a magnitude e a longevidade da resposta imune. Foram verificadas grandes quantidades de anticorpos contra as proteínas recombinantes. Um artigo com todos os detalhes da pesquisa foi publicado na revista Infection Immunity.
Já no grupo de Irene, Marina publicou, em 2017, um artigo na revista Frontiers Immunology, fruto das pesquisas que iniciou na Unifesp. ”Produzimos a mesma proteína em leveduras (Pichia Pastoris) e analisamos a proteção contra uma das variantes, a VK210”, relata Marina. “A proteção foi boa, chegou a 66% em camundongos.”
No ano seguinte (2018), o grupo publicou um outro estudo, desta vez na Scientific Reports. Nele, os pesquisadores imunizaram camundongos com duas proteínas recombinantes baseadas na circunsporozoíta – produzida no sistema P. Pastoris – e mostraram a proteção parcial contra os dois alelos principais: VK210 e VK 247.
Aprendizado no exterior
Entre 2017 e 2018, Marina foi para a Universidade de Oxford, como parte do seu pós-doutorado, pelo programa de Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior (Bepe) da Fapesp. Como ela contou, àquela época, os pesquisadores tinham acabado de gerar o terceiro parasita transgênico. “É um parasita chamado Plasmodium berghei, que infecta camundongos, com a sequência do P. vivax-like”, diz a pesquisadora. “Meu objetivo foi avaliar a proteção contra essa terceira variante e testar uma nova proteína baseada na CSP.”
Essa nova proteína tinha como objetivo induzir, além da resposta imune já vista em trabalhos anteriores, uma resposta celular. “Colocamos uma sequência extra do vírus mumps (que causa caxumba), como se fosse um adjuvante colado à sequência da proteína”, explica Marina.
Segundo a pesquisadora, a ideia de inserir esse vírus foi para tentar fazer com que a resposta celular, mediada por células B, fosse ativada. “Até aquele momento, só tínhamos visto que a proteção mediada por anticorpos era boa, mas não o suficiente para dar mais qualidade a uma vacina.”
“Ao adicionar essa sequência”, continua Marina, “percebemos que houve um tipo de resposta um pouco mais forte, mas a proteção contra a VK210, especificamente, era comparável às vistas anteriormente. Concluímos que a presença do vírus mumps dá um benefício, mas isso não se traduziu em proteção, pelo menos nesse sistema.”
Os detalhes desses estudos foram publicados em 2020, no periódico Vaccines . Em 2021, na Scientific Reports os cientistas mostraram, pela primeira vez, a proteção contra os três tipos de variantes do P. vivax.
Ineditismo
De volta ao Brasil e com novos conhecimentos, Marina analisou o efeito dos adjuvantes nas formulações contra a malária. Assim, foi utilizada a proteína PvCSP-All epitopes (sem o vírus da caxumba) adicionada a dois adjuvantes. O Poly (I:C) (ácido poliinosato-policitidilato) é um RNA de fita dupla que pode ativar vários elementos da defesa do hospedeiro paralelamente ao de uma infecção viral. Já o Montanide ISA 720 é uma emulação de óleo em água cujo mecanismo de ação ainda era desconhecido.
Primeiramente, os pesquisadores vacinaram grupos de seis camundongos em três situações: uma formulação com a proteína PvCSP-all epitopes mais Montanide; um com PvCSP mais Poly (I:C); um grupo só com Montanide; e o último só com Poly (I:C), para comparar os efeitos dos adjuvantes. Um outro grupos de seis camundongos fêmeas foram imunizadas com formulação contendo as duas proteínas recombinantes , misturadas com dois adjuvantes: Poly (I:C) e Montanide.
Cada animal recebeu três imunizações com 14 dias de diferença. A quantidade de anticorpos contra cada variante foi medida por Elisa (teste sorológico que se baseia em reações antígeno-anticorpo detectáveis por meio de reações enzimáticas) 20 dias depois da administração de cada dose. “Fomos mais a fundo e sequenciamos o RNA (RNA-seq) para observar o perfil transcriptômico, ou seja, quais genes são expressos em cada tipo de célula”, explica Marina. “Além disso, foram feitas as análises corriqueiras de titulação [quantidade] de anticorpos, resposta celular e detecção de citocinas. Tudo isso para ter uma foto maior da ação de cada adjuvante com a proteína.”
Os resultados mostraram que o Poly (I:C) ativou as vias das células T (TCD4+ e TCD8+), o que, segundo a pesquisadora, era o esperado. Já o Montanide fez uma perturbação maior em células B, responsáveis pela imunidade mediada por anticorpos.
Um dos achados importantes, segundo a bióloga, é que os tipos de resposta foram influenciados mais pelos adjuvantes do que do antígeno em si. “Mesmo as células dos camundongos imunizados só com Poly (I:C) ou Montanide apresentaram um tipo de resposta semelhante aos que tinham o antígeno na formulação. O mais importante é qual adjuvante a gente usa.”
Esses resultados foram publicados recentemente na revista Frontiers in Immunology.
Continuidade
O laboratório coordenado por Irene está com dois projetos em andamento visando futuros testes clínicos em humanos. O primeiro diz respeito à produção e estudo da estabilidade da formulação principal em Boas Práticas de Fabricação (BPF), que são um conjunto de medidas aplicadas em toda a cadeia produtiva com o objetivo de garantir a segurança sob o ponto de vista das condições de higiene.
O outro pretende avaliar a eficácia de uma vacina multiantigênica e multiestágio, combinando a CSP a outros antígenos dos estágios sanguíneos no parasita.
Para André Siqueira, infectologista, pesquisador da Fiocruz e membro da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, é difícil estimar o impacto que uma vacina contra a malária vivax pode ter. “É muito cedo para falar, mas se tivermos algum imunizante que tenha uma efetividade aceitável [lembrando que a única já aprovada tem eficácia de 30%], já teria um efeito importante como aditivo na luta contra a eliminação da malária.”
“Eu acho que essa vacina pode ajudar a resolver o problema da malária quando utilizada em conjunto com outras estratégias de controle, como mosquiteiros, roupas que protejam pernas e braços, telas em portas e janelas e uso de repelentes, por exemplo. Além disso, poderá ser melhorada e abrir caminhos para que novos produtos sejam testados”, finaliza Irene.
Doença negligenciada
A malária é uma doença infecciosa febril aguda, causada por protozoários do gênero Plasmodium, transmitidos pela picada da fêmea infectada do mosquito do gênero Anopheles, também conhecido como mosquito-prego.
De acordo o último Relatório Mundial da Malária, publicado pela Organização Mundial da Saúde, estima-se que houve 241 milhões de casos de malária e 627 mil mortes pela doença em todo o mundo em 2020. Isso representa cerca de 14 milhões de casos a mais em 2020 em comparação com 2019 e mais 69 mil mortes.
No Brasil, no ano de 2020, foram notificados cerca de 145 mil casos de malária, uma redução de 8% em relação a 2019, segundo dados do Ministério da Saúde. Dados preliminares apontam que, em 2021, houve uma redução de 4% em relação ao ano de 2020.
“A transmissão da malária no País acontece quase que inteiramente na região Amazônica, principalmente ambiente rurais”, explica André Siqueira, infectologista. “Nos últimos anos, foram reportados casos também nas regiões de garimpo e em áreas indígenas.” Com informações da USP
Matéria postada originalmente no site: https://www.labnetwork.com.br/noticias/vacina-contra-malaria-desenvolvida-pela-usp-devera-entrar-na-primeira-fase-de-testes-clinicos-em-2023/